Doze Luas de Sangue — Máscaras

Três da tarde no salão paroquial

Às três da tarde, o salão paroquial parecia um teatro de sombras: ventiladores rangendo, cortinas gastas, cheiro de cola e cera quente. Máscaras pendiam de varais como rostos em descanso. Helena e Miguel chegaram com antecedência; Cecília, a jornalista, já esperava, câmera a postos. O padre Ícaro surgia e sumia entre mesas, distribuindo sorrisos, enquanto voluntários ajustavam fitas e testavam o som.

— Vai ser rápido — garantiu Ícaro. — Ensaio, foto oficial e… silêncio. Chega de boato.

No entanto, boatos não pedem licença. O murmurinho crescia com a entrada de Arnaldo e um guarda; ambos evitaram a câmera de Cecília. Miguel fez sinal para Helena e apontou discretamente para um caixote de madeira encostado ao palco, coberto por uma lona azul. Na lateral, alguém havia desenhado, a giz, três talhos sobre uma meia-lua.

— As máscaras de 2000 — sussurrou uma senhora, percebendo nosso olhar. — O Osvaldo guardava. Disseram que hoje iam sair.

A máscara azul

Helena engoliu em seco. Em seguida, empurrou a lona com cuidado. Lá estavam as máscaras antigas: papel machê endurecido, pintura descascando, narizes pontudos. Entre elas, uma máscara azul idêntica à que sua mãe descrevera no bilhete guardado. Atrás do forro, algo arranhava.

— Cuidado — disse Arnaldo, aproximando-se.

Helena virou a máscara. Dentro, colado com cera, havia um papel dobrado. “Quem guarda o rosto guarda o segredo”, lia-se, em caligrafia antiga. Abaixo, um selo de cera com a meia-lua e os três talhos.

— Não mexa — o padre apareceu de súbito. — Essas peças são frágeis, quase sagradas para a comunidade.

— Sagrado é o que não pede sangue — respondeu Helena, sem elevar a voz. — E isso aqui anda pedindo.

Cecília fotografou; Ícaro pediu que apagasse. Por fim, mandou começar o ensaio. A banda tocou valsa; pares de máscaras deslizaram. Era bonito e assustador.

Cera, corte e coro

Durante o ensaio, Miguel desapareceu por um minuto. Voltou com um graveto melado de cera.

— Atrás do palco tem goteira de vela — disse. — E marcas no chão, como se alguém tivesse arrastado metal.

Arnaldo franziu a testa. Levou o graveto ao nariz, instintivo. — É cera de igreja. Misturada com resina. Igual à de ontem.

Nesse exato momento, um dos foliões caiu. O som parou. No pulso dele, preso por uma fita, o estandarte da meia-lua. Na pele, três arranhões paralelos. Helena e Arnaldo correram. O rapaz acordou confuso, jurando ter sido empurrado.

— Empurrado por quem? — perguntou Cecília, gravando apesar dos protestos.

— Pela máscara — ele murmurou, e ninguém riu.

Porta do arquivo

A confusão cessou, mas o ensaio perdeu a alegria. Enquanto isso, Helena e Miguel esgueiraram-se até uma porta estreita atrás do palco: “Arquivo Paroquial”. Trancada. Miguel mostrou um arame; Helena levantou a sobrancelha, mas deixou. O garoto aprendeu rápido demais certos truques que os adultos desaprendem.

Lá dentro, prateleiras de metal exibiam pastas de décadas. No fundo, um armário baixo com etiqueta “Diversos — Festas”. Em cima dele, uma vela recém-apagada ainda soltava fio de fumaça. O armário abriu-se. Dentro, caixas com fotos de 2000. Helena reconheceu-se criança, de máscara azul, ao lado da mãe. Atrás da foto, uma anotação a lápis: “Votos”. E uma lista: nomes repetidos em pares.

— Votos de quê? — Miguel perguntou.

— De promessa — disse Helena. — Coisas que adultos fazem quando querem que o ano seja melhor que o anterior.

O papel do “Próximo Uivo”

No fundo da caixa, um envelope grosso com selo de cera. Helena quebrou com o canivete que carregava desde os tempos de acampamento escolar. Dentro, um folheto mimeografado com cabeçalho: “Calendário da Luz — 2000”. Um círculo lunar dividido em doze partes. Em fevereiro, a legenda manuscrita: “Próximo Uivo”. Ao lado, uma seta apontando para “Máscaras”.

— Quem fez isso? — Miguel segurou o papel como se queimasse.

— Alguém que achou que organizar tornaria o horror tolerável — respondeu Helena. — Ou vendável.

Nesse instante, passos no corredor. Três toques lentos na madeira. Alguém fechou a porta por fora. O trinco metálico caiu com um som que atravessou o estômago. Helena apagou o lampejo da vela com os dedos. Ficaram no escuro por dois segundos longos.

— Tranca por dentro — sussurrou Miguel, apontando um ferrolho antigo. — Alguém queria nos prender aqui.

Do lado de fora, um uivo — curto, contido, quase humano. O primeiro do dia.

Ícaro, Arnaldo e a lista

Arnaldo arrombou a porta com ombro policial. Ícaro apareceu, ofendido por termos mexido onde não devíamos. Helena levantou o folheto do Calendário da Luz. Arnaldo leu. O padre desviou o olhar.

— De onde veio isso? — perguntou o sargento.

— Do Osvaldo — Ícaro respondeu rápido demais. — Ele gostava de documento. Fazia catálogos. Coisas de bibliotecário.

— E a lista? — Helena mostrou o verso da foto. Nomes em pares: Inácio & Bel, Rute & Silas, Ícaro &…. O resto estava raspado. Ainda assim, o traço denunciava: a mão que raspou foi a mesma que escreveu.

— Listas geram processos, Helena — disse o padre, gelado. — E processos geram ódio. Nosso papel é apaziguar.

— Nosso papel é não deixar gente morrer — retrucou Arnaldo. — Padre, se o senhor tem outros papéis, entregue agora.

Ícaro respirou. Tirou do bolso um envelope menor. “Era pra festa”, disse, sem fé. Dentro, convites numerados do Baile atual, cada um carimbado com a meia-lua e três talhos. No rodapé, a frase: “Três promessas, três graças.

O ensaio termina, a cidade recomeça

O ensaio foi encurtado. O padre anunciou que, por segurança, apenas máscaras antigas seriam usadas. Cecília publicou uma nota: “Baile mantém tradição com reforço de segurança”. Comentários pipocaram. A cidade é uma caixa de som quando quer.

Ao anoitecer, Helena caminhou até a ponte. A água do Rio das Cobras cheirava a pedra molhada. Em um pilar, outro selo de cera recém-colado; na cera, um fio de pelo curto, escuro. Junto dele, um recado manuscrito com tinta azul de escola: “Próximo Uivo: 03/02”.

— O baile — disse uma voz atrás dela.

Era Arnaldo, mãos nos bolsos, gravata torta.

— Vai ter patrulha. Mas a gente não patrulha milagre — ele disse, virando-se para a cidade. — Só gente.

— Talvez seja só gente — respondeu Helena. — E gente que sabe muito bem o que está fazendo.

Câmara Escura

De volta à biblioteca, Helena improvisou uma câmara escura no banheiro desativado do térreo. Amplificou as fotos de 2000. Ao lado de sua versão infantil de máscara azul, surgiu um detalhe que não notara antes: um anel com o símbolo da meia-lua e três talhos, no dedo de um homem que não olhava para a câmera.

— Esse aqui — Helena mostrou a Arnaldo quando ele chegou — também aparece em duas outras fotos. Sempre atrás de alguém importante.

— Comerciante — disse o sargento, enfim. — Silas Prado. Dono da madeireira. Patrão de meio mundo. E… primo distante de alguém que eu conheço.

Helena engoliu, seca. O sobrenome Prado mordeu de leve.

— Parente do meu pai? — perguntou.

Primo do seu pai — confirmou Arnaldo. — Se está na lista de votos, não é à toa.

Uivo em fita

Nesse momento, Miguel entrou carregando uma fitinha cassete encontrada na caixa. Na etiqueta, escrito a mão: “Festa 2000 — Uivo”.

— Não tenho toca-fitas — disse Helena.

— Eu tenho — respondeu Arnaldo. Em seguida, trouxe do carro um rádio antigo de provas apreendidas e improvisou ligação. A fita rodou. Primeiro, valsa de salão, risos, copos. Depois, microfonia, gritos e um uivo longo, mais alto que a música. Alguém cochichou “pelo amor de Deus”. Outro alguém riu, nervoso. A fita cortou.

— Quem gravou achou que era parte do show — Miguel concluiu, pálido.

— Ou quis que parecesse show — Helena completou. — Se repetirem este ano, não vai ser acidente.

O mapa de três talhos

Helena abriu o Calendário da Luz sobre a mesa. Desenhou um mapa da cidade e marcou com caneta três talhos: ponte do rio, salão paroquial, praça do coreto. Ligados, formavam um símbolo que lembrava a meia-lua carimbada nos convites.

— Três lugares, três promessas, três graças — ela leu. — Três vítimas?

— Ou três patrocínios — Arnaldo rosnou, pensando alto. — Madeireira, paróquia, associação comercial. Não sei. Mas o baile vai ser campo.

— A cidade não vai cancelar — disse Helena. — Portanto, a gente entra. De máscara.

Arnaldo a olhou como quem mede coragem. — Você vai precisar de um par.

Helena pensou no anel, no sobrenome, no recado de tinta azul. Por fim, decidiu.

— Eu danço com o lobo se for preciso. Mas eu escolho a música.

Nota colada na porta

Antes de fechar a biblioteca, Helena encontrou uma nota colada por dentro da porta, presa com cera. “Próximo Uivo”, dizia; abaixo, um desenho: a meia-lua com três talhos, e, sob ela, um laço de fita — igual ao das máscaras. No canto, uma palavra escrita com capricho de calígrafo: Promessas.

Ela guardou o papel no caderno. O mês seguinte começaria onde este terminava: com promessas.


🌕 Próximo uivo

Série em 12 capítulos. O calendário avança e a lua de março pede Promessas. Quer saber quem está na lista, o que liga famílias e votos, e como será o baile?

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